quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Jogadores denunciam insultos racistas no futebol distrital

O 'caso Marega' está a colocar a questão do racismo em Portugal como tema principal em todo o lado: nos cafés, nas redes sociais, na imprensa e até na Assembleia da República. Um episódio que correu o mundo inteiro e que está a dividir a opinião pública. Uns garantem que o racismo está enraizado na sociedade portuguesa e deve ser erradicado, outros defendem que estes episódios não passam de casos pontuais e que os insultos são próprios de uma linguagem ligada ao desporto, neste caso ao futebol.
 Seja como for, a recusa de Marega, jogador do FC Porto, em continuar a jogar, alegando ter sido alvo de insultos racistas por parte de adeptos do Vitória de Guimarães, está a colocar o tema na ordem no dia e, nesse sentido o Diário de Leiria foi tentar perceber se no futebol distrital também existem casos de racismo e a resposta não podia ser mais conclusiva: sim!
 “O mundo do futebol é racista e não é de hoje”, resumiu Daniel Mbala, defesa central que veste a camisola da UR Mirense na presente época. Para o atleta de 25 anos, o racismo tem raízes nas casas e nas escolas. “Começa com as crianças, com aquilo que é ensinado”, disse, acrescentado que no lugar de Moussa Marega “teria feito o mesmo”
 Daniel Mbala conta que na presente época desportiva ouviu insultos racistas “em Pombal e em Ansião” no final do jogo, mas o atleta luso-angolano garante que o melhor é não reagir às provocações. “Há a linguagem normal do futebol, e depois há o 'vai para a tua terra', 'preto de merda' e 'macaco'. Quando oiço isso eu reajo de forma irónica. Rio-me e provoco para ver até onde é que as pessoas são capazes de ir”, disse o defesa, que fez parte da sua formação no Benfica, acrescentando que as pessoas que insultam devem “ser banidas dos recintos” desportivos.
 Quem também tem muitas estórias de racismo para contar é René Ceita. O atleta do GD Santo Amaro diz já ter sido alvo de três episódios em que foi insultado tendo em conta a sua raça. Num desses episódio, na época 2014/15, ouviu insultos racistas por parte de um pai de um adversário que estava a assistir à partida. Os insultos foram de tal forma perpetuados que René Ceita acabou por perder a compostura e 'partir' para cima do adepto. “Descarreguei a raiva nele e enfrentei-o. Se não fossem os meus colegas de equipa a agarrarem--me não sei o que teria acontecido”, contou.
 Nesse jogo as autoridades policiais (GNR) identificaram o agressor verbal e conta René Ceita que foi levado a tribunal, lamentando, contudo que o árbitro também não tenha actuado. 
 Dois anos antes, ao serviço do Matamourisquense, o médio luso-angolano diz ter sido insultado por elementos da equipa adversária que estavam no banco de suplentes, e já esta época, René diz que o mesmo aconteceu na deslocação ao terreno do Caldas B com os insultos racistas a serem proferidos por directores da equipa da casa que “no final do encontro pediram desculpa”. As desculpas foram aceites, mas René Ceita garante que não esquece.
 “O futebol distrital tem muito racismo e isto começa no berço. Os miúdos são mal criados em casa. Estamos a falar de uma questão de educação e civismo. Além disso, todos os agentes desportivos têm responsabilidades e têm que actuar, desde a polícia ao árbitro”, salienta.
 Em relação à atitude de Moussa Marega, o médio de 31 anos garante que faria o mes­mo. “Eu apoio a decisão dele. Aquilo é uma humilhação muito grande. É muito duro. É preciso ter uma atitude muito forte e de coragem para sair do campo, mas acho que a equipa também devia ter saído. Nessas situações sentimo-nos sozinhos e isolados”, concluiu René Ceita.
 Apesar de ser quase consensual a existência de racismo no futebol distrital em Leiria, há sempre uma excepção que confirma a regra. Falamos do caso de Aliú Camará. O avançado que representa actualmente o ID Vieirense diz nunca ter sido alvo de insultos racistas. 
 “Já ouvi muitas pessoas a mandarem bocas, mas nada de racismo. Pelo menos nunca me apercebi disso”, vinca. Quan­to ao episódio com o avançado do FC Porto, o luso-guineense assegura que “faria o mesmo”, referindo ainda que compreende a tomada de posição de Marega.

Presidente da Associação de Futebol de Leiria quer “mão pesada” 
O presidente da Associação de Futebol de Leiria (AFL) diz querer “mão pesada” para quem insulte nos recintos desportivos. Manuel Nunes assegura ainda que “não têm havido” muitos episódios de racismo no futebol leiriense nos últimos anos, mas que esporadicamente eles acontecem, o que deixa o dirigente “preocupado”. 
O responsável recordou mes­mo o que aconteceu com o Caldas Sport Clube na época 2017/2018. Nessa altura, o clube caldense foi castigado pela Federação Portuguesa de Futebol por uma série de irregularidades no jogo da Taça de Portugal, frente ao Farense, entre elas “comportamento discriminatório “ por parte dos adeptos. Em suma, o Caldas foi castigado com uma multa, um jogo à porta fechada e dois de interdição do Campo da Mata. 
Manuel Nunes recordou ain­da que a AFL tem dois programas em acção  - o Cartão Branco e o Saber Estar no Futebol – que já garantiram àquele organismo uma distinção por parte do Plano Nacional de Ética no Desporto, mas o dirigente  refere que há ainda um longo caminho a percorrer. 
“As associações de futebol vão reunir no dia 22, em Viseu, com a Autoridade Contra a Violência em que a questão dos insultos racistas será o primeiro ponto de trabalho. Tem que haver mão pesada e as regras têm que estar bem definidas”, assegura. 
Por outro lado, Manuel Nunes diz ter conhecimento que as autoridades policiais têm feito a identificação de prevaricadores que mais tarde ficam impedidos que ir a recintos desportivos, mas o presidente da AFL refere ainda que é importante os clubes organizarem-se no sentido de evitar incidentes.
“Tem havido uma certa apatia perante estes casos. Em última análise, os clubes também são responsáveis pelo que está a acontecer nos seus campos. Têm a obrigação de mandar embora quem não se está a comportar e até deixar de ser sócio”, referiu Manuel Nunes, acrescentando que o árbitro tem de escrever no relatório o que viu, podendo mesmo “acabar com o jogo”, o que levará a “multas pesadas” para os clubes em causa. 

Texto: José Roque - Diário de Leiria
Foto: Luís Filipe Coito/Arquivo

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